Com certeza você já ouviu (se não já falou) que ninguém tem o direito de julgar os outros. Eu certamente já falei isso diversas vezes na vida, e já ouvi várias pessoas fazerem o mesmo. A reação a esse discurso é quase sempre de concordância – parece que todos estão de acordo que é feio julgar. Acontece que nunca conheci uma pessoa que não julgasse. E isso não é necessariamente ruim.
Há algum tempo, parei de concordar e falar que é errado julgar os outros. Isso porque achei que era hipocrisia minha pedir o não-julgamento, quando era claro que eu julgava.
Busquei a palavra julgamento no dicionário (Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras):
JULGAR (v.)
1. Apreciar e decidir como juiz ou árbitro
2. Pronunciar a sentença, sentenciar
3. Supor(-se), imaginar(-se), considerar(-se), pensar
4. Formar opinião sobre, avaliar; emitir conceito sobre
5. Reputar, considerar, tem em conta de
Vamos nos ater às definições de 3 a 5, que em princípio se aplicam fora do contexto jurídico: julgar é nada mais do que formar uma opinião sobre algo. E isso é essencial para a formação de identidade e de caráter de qualquer um. Julgar é algo intrínseco a pensar. Queremos mesmo que as pessoas parem de pensar?
Não quero, com esse texto, pedir que passemos a apontar o dedo na cara dos outros indiscriminadamente. A intenção é tentar entender o que as pessoas realmente pedem quando dizem que não devemos julgar. Vamos trocar a palavra “julgar” por “opinar”: não deveríamos opinar sobre aquilo que não temos conhecimento. Isso porque nossas ações (o que fazemos e falamos) com base nas nossas opiniões podem ter efeitos fortes e potencialmente destrutivos na vida de outras pessoas. E é injusto que uma opinião frouxa, que possivelmente ignora fatos e fatores envolvidos na questão, tenha esse poder.
Por isso, o discurso do julgamento deveria ser o discurso da empatia. De um lado, precisamos conhecer o mundo e como as coisas funcionam para estabelecer opiniões (opiniões que não se baseiam em fatos são simplesmente fracas). De outro, vivendo em sociedade precisamos saber que somos todos diferentes e temos interesses distintos e que, para compartilhar o espaço e conviver com menos conflitos, é preciso tentar se colocar no lugar do outro e, mesmo não concordando, buscar compreender qual é o seu ponto de vista.
O que entendo que queremos ao pedir o não-julgamento, portanto, é que paremos de:
- Emitir opiniões que não sejam baseadas em fatos, pois elas enfraquecem os debates, não nos levam a diante (pois tem alicerce em falácias) e parecem ser a fundação da intolerância e da violência
- Julgar situações e pessoas sem conhecer todos os elementos que levaram a determinadas atitudes ou ações
- (o mais delicado de todos) Decidir como juiz e sentenciar – as duas primeiras definições do dicionário. É natural que tomemos decisões a partir das nossas opiniões. É normal que um pai ou uma mãe possam colocar seu filho de castigo ou puni-lo para ensiná-lo que tudo tem consequência. É esperado que uma empresa tome providências quando um funcionário age em desacordo com o código de conduta. Tudo isso desde que a reação seja proporcional à ação e que respeite as leis e, a meu ver, os direitos humanos (que são mais sensatos do que muitas leis). Mas não é nossa responsabilidade tomar a justiça em nossas próprias mãos, transformar nossa opinião em ação ao punir e arbitrar sobre aquilo que não nos diz respeito. É para isso que existe o sistema judiciário (agora, se é ou não papel do Estado arbitrar sobre a vida das pessoas, como é o caso da pena de morte, isso é assunto para outro texto).
Se esses princípios do julgamento parecem utópicos ou não sejam possíveis de colocar em prática em determinada situação, guarde sua opinião para você. Não tome decisões ou atitudes que afetem outros baseadas nela.
No fim desse processo (de empatia em relação à pessoa ou situação julgadas), mesmo se não mudarmos nossa opinião, ela partirá de um ponto de vista mais humano e elaborado, pois vai enxergar o outro – e não passar por cima dele como um trator, como se costuma fazer.
Se admitíssemos que até mesmo o mais aplicado cientista pouco sabe em relação a tudo o que se existe no universo para saber (da escala microscópica até a macroscópica) – e aceitássemos que todo telhado é de vidro –, teríamos mais cuidado com nossos julgamentos. Portanto, da próxima vez que ficar tentado a dizer “ninguém tem o direito de julgar o outro”, repense: todos têm o direito (e o dever, para mim) de formar opiniões embasadas em fatos e que levem em conta os mais diversos aspectos da situação ou pessoa julgada, especialmente sobre o que levou aquilo a acontecer. É um exercício para todos nós.
Julgar é humano. Impedir as pessoas de pensar é um caminho na direção da ignorância, intolerância e violência.
Vamos nos libertar do julgamento sobre os que julgam (e passar a julgar com responsabilidade e empatia)!
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